Rodrigo Ratier

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Pânico moral vira arma no mundo contra educação sexual nas escolas

Na praça Itália, região central de Pescara (a 209 km de Roma), dois cartazes dominam os tradicionais quadros de avisos das cidades italianas.

"Hoje na escola um ativista LGBT explicou como mudar de sexo", diz a frase supostamente atribuída a Giulio, supostamente um adolescente de 13 anos.

"Hoje na escola lemos uma fábula em que a princesa era um homem", afirma supostamente Anna, supostamente uma criança de 8 anos.

A campanha tem ainda um terceiro cartaz, com uma suposta declaração de Matilde, uma jovem de supostamente 16 anos: "Minha escola também permitiu que os meninos usassem os banheiros femininos".

'Hoje na escola lemos uma fábula em que a princesa era um homem'
'Hoje na escola lemos uma fábula em que a princesa era um homem' Imagem: Rodrigo Ratier

Junto aos cartazes há um pedido para assinar o manifesto "Mio figlio, no" ("Meu filho, não"), uma campanha para "livrar" a escola de discussões de gênero. A iniciativa é da ONG ProVita & Famiglia, um dos milhares de movimentos ultraconservadores que têm se dedicado a espalhar desinformação contra a educação sexual nas escolas.

Semelhanças com o discurso do finado movimento Escola Sem Partido ou com as falas de parlamentares como Nikolas Ferreira (PL-MG) e Kim Kataguiri (União-SP) não são coincidência. O movimento é global, como descreve Rogério Diniz Junqueira no artigo "A invenção da ideologia de gênero".

Para o pesquisador, a cruzada contra avanços e transformações em relação a gênero, sexo e sexualidade tem desencadeado, em dezenas de países, controvérsias políticas e intervenções na arena pública em favor de uma agenda regressiva.

A estratégia central é provocar o chamado "pânico moral" —o sentimento de medo por alguma ameaça, em geral, exagerada ou inexistente. No caso das discussões sobre sexualidade nas escolas, a desinformação é ingrediente-chave, e os cartazes da Provita ilustram esse caminho com nitidez.

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Para começar, "Anna", "Giulio" e "Matilde" provavelmente não existem. A coluna testou as supostas fotos nos sites Sight Engine e AI or Not, que detectam imagens geradas por inteligência artificial. Ambos cravaram que "Giulio" e "Matilde" são produto de IA —o Sight Engine atribuiu 99% de probabilidade. E que "Anna" pode ter sido manipulada —55% de certeza, para o Sight Engine.

A coluna entrou em contato com a assessoria de imprensa da ProVita com três questões: 1- "Anna", "Giulio" e "Matilde" são crianças e jovens reais? 2- Caso sejam, como e onde ocorreram os episódios específicos descritos nos cartazes? 3- Se as imagens foram geradas por inteligência artificial ou compradas de banco de imagens, essa sinalização está comunicada claramente nos cartazes?

A ONG não respondeu até a publicação deste texto.

Mas a desinformação prescinde dos avanços tecnológicos mais recentes. A retórica em defesa da "família tradicional" lança mão das falácias discursivas habituais do campo ultraconservador. Uma lista não exaustiva inclui o uso do exemplar saliente (destacar um caso "fora da curva" como se fosse a norma), inversão de sinais (transformar defensores da igualdade de gênero em "doutrinadores"), vitimização (legitimação da homofobia ou da transfobia como "liberdade de expressão"), teorias da conspiração (professores são "perigosos militantes travestidos de educadores"), exagero, tom inflamado, falsidade ("As escolas italianas se tornaram verdadeiros laboratórios ideológicos LGBTQ+", conforme o texto do manifesto).

Ao pregarem que a formação moral e sexual das crianças e jovens deve ser exclusividade da família, os movimentos negam informações importantes sobre saúde sexual e, como escreve Junqueira, "estimulam a repatologização das homossexualidades e transgeneridades, entre outros posicionamentos que representam cerceamentos a direitos e garantias fundamentais".

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Quanto à ProVita, a ONG se queixava da lentidão do governo de extrema-direita de Giorgia Meloni, que em campanha havia prometido proibir a discussão de gênero nas escolas. Até o dia 3 de maio, a campanha, iniciada em fevereiro, havia colhido 34.211 da meta de 35 mil assinaturas —98% do objetivo.

A vitória, porém, veio alguns dias antes, em 30 de abril.

Em coletiva de imprensa, o ministro da Educação, Giuseppe Valditara, anunciou que todas as atividades escolares que digam respeito à sexualidade exigirão autorização prévia por escrito dos pais. Em caso de recusa, as escolas terão que garantir aos alunos uma atividade alternativa.

O chamado "direito de exclusão" era uma das demandas da ONG, que saudou a fala de Valditara como "passo histórico contra o gênero nas escolas". A oposição protestou lembrando que o direito à educação deve ser garantido a todos e todas, independentemente de eventuais restrições das famílias.

Enquanto isso, a Itália assiste ao aumento das infecções sexuais entre jovens.

Reportagem

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