Dedo arrancado: o que explica mordidas de peixes na 'capital do ecoturismo'

Bonito, capital do ecoturismo e reconhecida como exemplo de sustentabilidade, ganhou atenção recentemente depois que turistas relataram ataques de peixes. Os episódios ocorreram pontualmente em um famoso ponto turístico, mas levantam o debate sobre a necessidade de cuidado e vigilância em paraísos naturais, segundo especialistas.

O ponto turístico em questão é a Praia da Figueira. Só em 2025, a Secretaria de Saúde da cidade registrou 30 casos de banhistas mordidos por peixes na lagoa local. Em um dos casos, uma pessoa perdeu parte de um dedo. No ano passado, foram 64 incidentes.

O problema só foi remediado quando, em 26 de março, o Imasul (nstituto de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul) interditou a Praia da Figueira por três dias consecutivos.

O atrativo foi reaberto depois que os atuais administradores implementaram novos dispositivos de segurança. O principal deles foi uma barreira de contenção na lagoa, que impede o contato dos banhistas com os peixes.

A lagoa é artificial e fica em uma fazenda particular
A lagoa é artificial e fica em uma fazenda particular Imagem: Divulgação/Praia da Figueira

Espécies exóticas

A lagoa é artificial e fica em uma fazenda particular. Segundo o biólogo José Sabino, que acompanhou a fiscalização na Praia da Figueira, realizada pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) com o Ministério Público, originalmente o local era uma zona de mineração de calcário com tamanho equivalente a seis campos de futebol.

A área foi alvo de escavações sistemáticas, até que, em dado momento, a cava se esgotou. Então, os primeiros administradores tiveram a ideia de encher a cavidade com água dos rios de Bonito.
José Sabino, biólogo

"Isso ocorreu há cerca de 20 anos. À época, não existia uma legislação específica sobre concessão de água fluvial, o que facilitou esse processo", disse Sabino ao UOL.

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Para enriquecer o ambiente e deixá-lo mais atrativo, os primeiros proprietários introduziram na lagoa peixes da espécie pacu. Os animais são típicos do Pantanal de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, mas não são próprios das nascentes do Rio Formoso, sendo consideradas espécies exóticas.

Anos mais tarde, quando a fazenda foi comprada por outra família, suspeita-se que os novos proprietários tenham adquirido também tambaquis ou tambacus. Ambos os peixes, de origem amazônica, também são considerados exóticos.

Segundo a bióloga Joanice Battilani, superintendente do Ibama em Mato Grosso do Sul, a suspeita foi motivada pelas próprias características das espécies.

O tambaqui e o tambacu são peixes maiores do que o pacu e têm uma dentição mais forte. Há relatos de ataques de tambaquis e tambacus a banhistas nos rios amazônicos. O pacu, por sua vez, não é um peixe de temperamento agressivo.

Praia da Figueira é um dos principais atrativos turísticos de Bonito
Praia da Figueira é um dos principais atrativos turísticos de Bonito Imagem: Divulgação

"Os nossos pacus aqui da região são adaptados a comer flores e frutas locais. Inclusive, no Rio da Prata, há cardumes enormes e eles comem as flores dos ipês que florescem na margem da mata ciliar", diz Joanice ao UOL.

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"Não há castanhas na mata ciliar do Rio da Prata. Por isso, eles acabam não desenvolvendo uma dentição muito forte. Eles não têm essa adaptação para dilacerar um dedo com tanta força."

Sabino explica que soltar peixes fora de seu ambiente não é "refaunação", é "risco ecológico ilegal". Ele ressalta que Bonito é um símbolo do ecoturismo brasileiro, conhecido mundialmente pelas águas cristalinas, rica biodiversidade e boas práticas de visitação —mas que até mesmo "paraísos naturais" precisam de vigilância e conhecimento.

Na avaliação de Sabino, os incidentes na Praia da Figueira aconteceram por uma somatória de erros. O primeiro deles foi ter introduzido os peixes ali. Independentemente da espécie, os administradores deveriam ter uma licença ambiental para piscicultura (cultivo de peixes), o que não era o caso.

O segundo erro foi alimentar os peixes com ração. Os proprietários negam que o façam, uma vez que a conduta é proibida por lei, mas Sabino acredita que é provável que isso ocorra —ele diz que a lagoa não tem comida natural suficiente para manter peixes com enorme biomassa. Como consequência, eles acabam por confundir os turistas com os tratadores.

Um terceiro fator que poderia estar atrelado aos incidentes é o próprio comportamento dos turistas. Vídeos mostram pessoas brincando com os peixes, estendendo a mão perto dos animais para observar a reação deles e jogando pedaços de comida na lagoa para alimentá-los. Apesar disso, para Sabino, a culpa maior é dos proprietários, que deveriam ter agido para impedir que isso acontecesse e demoraram a tomar providências.

"A gestão de risco teria de ter sido feita por quem opera o atrativo. É uma obrigação", afirma Sabino.

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Quando conversamos com os proprietários, eles argumentaram que os casos representavam uma pequena minoria dentro de um universo de milhares de turistas que visitam o local todos os anos. Me parece que há um despreparo e até um certo desprezo. Diga isso a uma pessoa que perdeu um dedo, que está ali sofrendo.
José Sabino, biólogo

'Serve de alerta'

Durante a vistoria da lagoa, em meados de abril, Sabino e a equipe tentaram capturar peixes das espécies-alvo (pacu, tambaqui e tambacu), sem sucesso. Há apenas breves registros visuais, feitos por meio de um drone, do que pode ser alguma das espécies-alvo, provavelmente pacu.

A equipe suspeita que os administradores tenham feito uma operação de retirada dos peixes que causaram os incidentes antes de os agentes fiscalizadores chegarem à lagoa.

Sob o ponto de vista da redução de riscos (tanto para o ambiente quanto para os turistas), a conduta é positiva. Sob o ponto de vista da responsabilização perante a lei, não. De acordo com Joanice, como não foi possível coletar nenhuma amostra, os administradores não podem ser autuados pela introdução de espécies exóticas na lagoa.

Para que seja feita uma autuação pela introdução de espécies exóticas, a equipe teria de ter coletado e identificado pelo menos uma amostra, o que não ocorreu. Ainda assim, eles podem ser responsabilizados pelo cultivo irregular de peixes, uma vez que não tinham licença ambiental para a piscicultura.

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O Ibama solicitou aos proprietários a nota fiscal que comprovasse a aquisição dos peixes, bem como sua destinação, além do licenciamento ambiental. Eles afirmaram que não tinham como comprovar a origem dos peixes e alegaram que, quando adquiriram o empreendimento, em 2005, os animais já estavam lá.

Os proprietários apresentaram uma licença atualizada de operação do empreendimento, de 2021. No documento, não constam informações sobre permissão para aquicultura. Há apenas uma condicionante de não ter contato com os peixes ou alimentá-los.

Os administradores apresentaram também um projeto técnico, de 2015, em que alegam que já faziam o monitoramento dos peixes que foram introduzidos na lagoa. No documento, consta que o próprio Ministério Público havia aberto uma solicitação naquele ano para a retirada dos animais.

"Pelas informações, verifica-se que os órgãos responsáveis já sabiam dos ataques desde 2015. Ainda assim, os peixes foram mantidos no local. Há grande possibilidade de que os espécimes no local possam ser híbridos, tambacus ou tambaquis adquiridos como alevinos, juntamente com pacus, na implantação do empreendimento", afirma Joanice.

Os acontecimentos atuais certamente servem de alerta aos empreendedores para a necessidade de adoção de medidas urgentes em casos de acidentes, principalmente com relação à fauna --a região da Serra da Bodoquena apresenta elevada riqueza de biodiversidade e recursos naturais. O mais importante é respeitar a legislação ambiental.
Joanice Battilani, superintendente do Ibama em Mato Grosso do Sul

Prefeitura implementa sistema de gestão de segurança

Procurada pelo UOL, a prefeitura de Bonito disse, em nota, que está ciente da recorrência de incidentes envolvendo mordidas de peixes na lagoa e encaminhou a questão ao Imasul, que "tomou as providências necessárias junto ao atrativo (...) para garantir a segurança dos visitantes".

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A prefeitura informou que Bonito tem implementado o sistema de gestão de segurança em seus principais atrativos turísticos, incluindo os dois atrativos públicos gerenciados pela prefeitura —a Gruta do Lago Azul e o Balneário Municipal.

A reportagem procurou também o gerente da Praia da Figueira para comentar o caso. Em um primeiro momento, ele se colocou à disposição para esclarecimentos, mas depois não deu mais retorno às tentativas de contato. O espaço segue aberto.

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