Como ultradireita usou grupos privados para crescer na América Latina

Ler resumo da notícia
Por meio de organizações privadas que articulam e difundem ideias, os chamados think tanks, a América Latina se tornou nos últimos anos uma peça-chave na expansão da extrema direita, principalmente em países como Brasil, Argentina, Chile, Peru, Equador, Guatemala, Venezuela e México. É o que defende a historiadora argentina Maria Julia Gimenez, autora do livro "Um Atlântico Liberal: think tanks, Vargas Llosa e a ofensiva da direita na América Latina".
Na obra, ela explica como uma das mais importantes think tanks, a FIL (Fundação Internacional para a Liberdade), presidida pelo escritor peruano Mario Vargas Llosa, foi uma das responsáveis pela expansão do liberalismo da extrema direita na região, como contraponto às mudanças sociais promovidas por governos de esquerda anos 2000. O trabalho foi publicado pela editora Unicamp no ano passado.
Vargas Llosa e a elite espanhola
Após fracassar na tentativa de ser presidente do Peru, em 1990, Vargas Llosa se mudou para a Espanha. Ele abraçou o neoliberalismo e se tornou uma referência na defesa desses valores no mundo e na propagação do discurso anticomunista. O escritor não só teve o apoio, mas ajudou a impulsionar uma vasta rede de think tanks liberais que atualmente contam com alcance mundial.
Fundada e presidida pelo escritor, a FIL foi surge em 2002 para, segundo seu próprio site, "defender e promover os princípios de liberdade, democracia e estado de direito, adotando estratégias destinadas a lutar, no campo das ideias, contra quem ameaça esses valores".
O livro de Gimenez revela que a FIL contou com o apoio da elite espanhola e se tornou representante dos interesses europeus na América Latina. A atuação ocorria em sintonia com os EUA, articulando intelectuais, empresários, ex-mandatários, jornalistas, acadêmicos, escritores, ativistas e outros think tanks. Os EUA atuaram como atores principais no processo de privatização entre os vizinhos, tornando a Espanha o país mais beneficiado nesse processo, com empresas na área de petróleo, bancos, energia, entre outros.
No Brasil, segundo a autora, os think tanks, relacionavam Lula ao presidente Hugo Chávez, na Venezuela. "O que, definitivamente, não era o mesmo, mas era uma tentativa de identificar o perigo vermelho", diz. Mas, ao mesmo tempo, "o ProUni era parte da complexidade que representava o governo Lula para essa direita. Para eles, o ProUni é um voucher de educação que deveria se implementar como política de educação", analisa.
Think tanks operam em rede
O modo como os thinks tanks atuam é quase imperceptível, diz a autora. Segundo Gimenez, as organizações "não são meios de comunicação, mas criam conteúdos para serem consumidos nos meios. Não são universidades, mas atuam com escolas de economia. (...) Não são partidos políticos, mas atuam com os partidos e criam pesquisas de opinião, projetos de lei. Ou seja, têm atuação política sem ser uma organização política, como se fosse uma associação multilateral".
Uma série de estudos mostra que a Rede Atlas, criada nos EUA em 1981, teve (e ainda tem) um papel muito importante internacionalmente na constelação de think tanks liberais, apoiando a criação de outras e unificando as pautas de defesa do liberalismo. Segundo o jornal britânico The Guardian, a rede é "um órgão coordenador global que promove em termos gerais o mesmo pacote político e econômico em todos os lugares onde opera".
O periódico afirmou no ano passado que a Rede Atlas influenciou o projeto político do presidente argentino Javier Milei, do ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro e de outras figuras da ultradireita no mundo, incluindo os ex-primeiros-ministros britânicos Boris Johson, Rishi Sunak e Liz Truss. Para o jornal, "esses representantes são os rostos de um programa que eles representam".
Think tanks liberais adotam a lógica da incidência, diz autora
Apesar do avanço do liberalismo da extrema direita ter a participação dos think tanks, esses institutos não são exclusivos da direita, explica a autora. "A esquerda também tem as suas", como fundações, centros e institutos. No entanto, diz Gimenez, a diferença é que os mais liberais atuam por meio da lógica da incidência, isto é, propagando discursos que criam um sentido liberal comum e dominante para temas urgentes, como a fome, a pobreza, os fluxos migratórios, as guerras, entre outros.
A incidência é o esvaziamento do pensamento crítico, apelando à persuasão, por meio de uma lógica de mercado, que nesse caso pode ser definido como o mercado de ideias. O mais importante é a expansão de um determinado conjunto de valores.
Maria Julia Gimenez
Gimenez aponta que um dos valores propagados pelo liberalismo, por meio da lógica da incidência, é o combate ao comunismo —uma lógica que surge na Guerra Fria, mas que tem sido atualizada, tornando-se, nos dias de hoje, qualquer ameaça às ideias liberais. "A construção política não pode ser reduzida à incidência. Deve ser uma lógica da construção de ideias e diálogo nos territórios, considerando o povo e suas demandas reais."
Na Argentina, think tanks buscam aproximar Milei de líderes globais
Na América Latina, um dos primeiros think tanks foi a Escuela Superior de Economia e Administração de Empresas. Fundada em Buenos Aires nos anos 1970 por Alberto Benegas Lync, herói político de Milei, tinha como objetivo formar economistas e administradores de empresas.
A entidade estabeleceu os primeiros contatos e organizou viagens e intercâmbios envolvendo figuras de relevância no campo do liberalismo. A atuação permanece até hoje, especialmente na aproximação entre Milei e o presidente norte-americano Donald Trump. A aposta da entidade é que o presidente argentino seja o porta-voz dos interesses de Trump na América do Sul.
Um outro think tank tenta estreitar vínculos do presidente argentino com outros líderes da extrema direita internacional. Trata-se da Fundação Faro, lançada pelo partido político de Milei, o Liberdade Avança, com o objetivo de criar quadros políticos próprios, de olho nas eleições legislativas de 2025, combatendo partidos tradicionais. A atuação de think tanks dentro de partidos já acontecia na Espanha e agora tem crescido na América Latina.
Conduzida pelo cientista político Agustín Laje, um dos maiores liberais da extrema direita argentina, a fundação tem no conselho internacional Alberto Benegas Lynch, o mentor de Milei, que tenta estreitar vínculos do presidente argentino com outros líderes da extrema direita internacional.
"Milei, Trump e outros nomes da extrema direita conseguem internacionalizar a pauta do liberalismo, articulando-o com outras demandas sociais, deixando-a mais traduzível de um país para o outro, até pelas formas de comunicação que utilizam, um jeito debochado, cínico, por meio das redes sociais", diz Gimenez.
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.