Leo Lins: ataque burro a juíza tem deputada amiga; negro perde, piada ganha

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Os ataques à juíza Bárbara de Lima Iseppi, que condenou o sedizente humorista Leo Lins a oito anos, três meses e nove dias de cadeia e ao pagamento de R$ 303.600 de multa são, antes de mais nada, ignorantes — porque, bem..., ignoram a lei — e injustos porque em desconformidade com a Justiça. Em muitos aspectos, remetem ao velho hábito, bastante arraigado no Brasil, de sobrepor interesses de uma corporação aos do conjunto da sociedade. Evocam, ademais, os tempos, como diria o próprio condenado, em que "negros tinham emprego garantido", sob o chicote dos seus senhores. E terei de evocar Joaquim Nabuco.
De todo modo, acalmem-se os insatisfeitos: a deputada Caroline de Toni (PL-SC), presidente da CCJ, uma bolsonarista renhida, empenhada em censurar professores em sala de aula, já se apresentou em socorro dessa gente toda: ela anunciou um projeto de lei que pretende mudar a Lei 7.716, de combate ao racismo e outros preconceitos. Caroline mobilizará o bolsonarismo em defesa da "liberdade de expressão". Parabéns, gente boa! Se o troço for aprovado, negros, gays, mulheres e outras minorias se tornarão mais vulneráveis, mas sairá fortalecida a cidadela dos humoristas que precisam escarnecer de pessoas já humilhadas para ter graça. Se assim for, outros grupos pegarão carona no enfraquecimento da proteção.
Poderia dar sequência a este texto indagando por que alguém precisa apelar ao ataque sistemático a minorias para fazer gracejo. Sim: pessoas riem, aplaudem com entusiasmo, entregam-se a uma espécie de catarse dos privilegiados. Mas isso fica para outro momento. Minha abordagem aqui atém-se à lei. A doutora Bárbara limitou-se a aplicá-la. Sua sentença é impecável. E, como resta óbvio, seus críticos não leram a sua decisão. Que os humoristas não o tenham feito, vá lá. São frequentes as situações em que a ignorância produz graça porque facilita a generalização e a caricatura. Que jornalistas incidam na mesma irresponsabilidade, aí é sintoma desses tempos rombudos.
Há um único probleminha na decisão, note-se. Há um erro de digitação que precisa ser corrigido. Num dado momento, cita-se a "Lei 7.719", em vez de 7.716, que é o texto de combate ao racismo e afins. Por que só eu apontei a incorreção? Porque só eu li a decisão antes de comentar no rádio, na TV, no podcast "Flow" e agora aqui. A frequência com que delinquentes intelectuais opinam sobre o que não leram, mesmo na imprensa antes chamada "profissional", deveria ser alarmante. Hoje em dia, vira só "direito a uma opinião".
AS LEIS QUE RESULTARAM NA CODENAÇÃO
Lins foi condenado com base nos parágrafos 2º A e 2º B do Artigo 20 da Lei 7.716 e no Parágrafo 2º do Artigo 88 da Lei 13.146. Transcrevo-os abaixo:
Lei 7.716, Artigo 20:
"Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
§ 2º: Se qualquer dos crimes previstos neste artigo for cometido por intermédio dos meios de comunicação social, de publicação em redes sociais, da rede mundial de computadores ou de publicação de qualquer natureza: (Redação dada pela Lei nº 14.532, de 2023)
Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.(Incluído pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)"
§ 2º-A: Se qualquer dos crimes previstos neste artigo for cometido no contexto de atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público: (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)
Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e proibição de frequência, por 3 (três) anos, a locais destinados a práticas esportivas, artísticas ou culturais destinadas ao público, conforme o caso. (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)".
Lei 13.146, Artigo 88:
"Art. 88. Praticar, induzir ou incitar discriminação de pessoa em razão de sua deficiência:
§ 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput deste artigo é cometido por intermédio de meios de comunicação social ou de publicação de qualquer natureza:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa."
Como se nota, a condenação, pelo topo, poderia ser de até 10 anos. Na dosimetria, até que a juíza foi complacente. Dada a progressão da pena, o condenado não ficaria nem dois anos em regime fechado. Com a leitura de alguns livrinhos, e espero que ninguém tente equiparar tal prática à de tortura, pode apressar a ida para a casa. Isso na hipótese de a sentença não ser reformada em instância superior. A pressão é grande, e o lobby, poderoso.
"Ah, mas existem racismo e outros crimes e preconceitos quando se trata de humor? Não era tudo brincadeira?" O humor não acabou na Alemanha nazista, na Itália fascista, na Espanha franquista ou no Portugal salazarista. Os humoristas passaram a fazer graça dos "suspeitos de sempre", para lembrar a fala do corrupto policial Louis em "Casablanca". Alguém poderia objetar: "Era o que lhes restava fazer". É... Talvez os quadrinistas alemães representassem judeus como ratos ou como aberrações narigudas porque não podiam fazer o mesmo com názis...
Pois é. Ocorre que eu escrevo num ambiente em que os artistas, também os humoristas, fazem escolhas. O único regime em que tudo é permitido é a tirania. Para os tiranos e seus amigos. A democracia é um sistema de leis. De resto, há uma diferença entre a caricatura que humilha e a que denuncia. Em "Maus", de Art Spiegelman, o "rato judeu" e o "gato nazista" expõem o horror em vez de bordá-lo com o sarcasmo contra os fracos. Não distinguir uma coisa de outra ou pode ser crime, além de evidenciar monstruosidade moral.
O RACISMO RECREATIVO
No dia 11 de janeiro de 2023, foi sancionada a lei 14.532. Por intermédio dela, a injúria racial e crimes conexos passaram a ensejar a mesma pena do racismo propriamente (e conexos). E foi esse texto que acrescentou os Parágrafos 2º e 2º A ao Artigo 20 da Lei 7.716.
Atenção, senhores humoristas e jornalistas inconformados com a sentença: todo projeto de lei se faz acompanhar de uma justificação. Esta não vai parar no texto legal, mas lhe dá o devido suporte ético, moral e constitucional.
Não quero lhes tomar muito tempo, não mais do que o necessário para ler este trechinho (caso tenham chegado até aqui e não estejam empenhados em ouvir apenas a própria opinião):
"O racismo recreativo consiste em um tipo específico de opressão racial. Trata-se da circulação de imagens derrogatórias que expressam desprezo por minorias raciais na forma de humor, de modo a comprometer o status cultural e o status material dos membros desses grupos. Essencialmente, o racismo recreativo não se diferencia de outros tipos de racismo, embora tenha uma característica especial: o uso do humor para expressar hostilidade racial, estratégia que permite a perpetuação do racismo (...). Para dar resposta a essa violência psicológica que causa danos à saúde mental das pessoas negras, destacadamente a baixa autoestima de crianças e jovens, propõe-se o racismo recreativo como causa de aumento dos crimes de racismo".
"Mas não é possível, Reinaldo, haver quem ache graça no racismo recreativo, na pedofilia recreativa, no capacitismo recreativo, na xenofobia recreativa etc?" Sem dúvida. Não é o meu caso. Longe de mim querer impor as minhas escolhas. Havendo um arcabouço legal numa democracia, cumpra-se. "E numa ditadura?" No que houver de inaceitável na lei, resista-se. Foi a escolha que fiz desde muito cedo. Adiante.
O HUMOR PODE TUDO?
Em sua defesa, leio na sentença, que Leo Lins afirmou (transcrevo conforme vai no documento):
"(...) Não quer que alguém se machuque por sua causa. Mas, se a pessoa assiste Tropa de Elite e sai com vontade de dar um tapa na cara de alguém, quem tem que ser punida é essa pessoa e não o ator Wagner Moura. Quem é mais sensível ou tiver gatilhos com alguns temas, espera que entenda que esse show não é para ela. Ficou entre os três melhores shows de standup esse ano. Sobe a foto de fl. 13 do ID 357473624, diz que uma moça com nanismo subiu no palco espontaneamente para que ele fizesse piadas. Depois do show ela inclusive ficou para lhe agradecer. Nas pp. 14/19, também são pessoas que subiram no palco para que ele fizesse piadas de forma espontânea em shows, são todas pessoas com alguma deficiência. Já levou intérprete de libras a seu show, não sabe se outro comediante já fez isso. Não reproduz piadas e conteúdos de seu show em sua vida cotidiana. Acha que piada é no palco. Se está andando na rua e vê uma anã, não vai fazer piada, ou no mercado e vê uma pessoa com sobrepeso, não está no ambiente para isso e ela não está ali para isso."
Bem, os fundamentos da lei 14.532 já responderam à essência de tal argumentação. Pondero, adicionalmente, que, com efeito, Wagner Moura não dá um tapa na cara de ninguém. Quem o faz é a personagem. Pergunta meramente retórica porque não há resposta possível para ela: "Quem é o personagem de Leo Lins nos shows de Leo Lins?" Já que este rapaz tem suscitado debates tão intensos sobre a liberdade de expressão, será ele também a provocar uma contenda sobre "a mimese aristotélica em tempos de 'stand up'"? Que tempos!
Ele não ignora o que faz, como aqui:
"Sou gordo, adoro comer e não gosto de fazer exercício. Como vou emagrecer? Pegando AIDS! Cê não adora comer de tudo? Sai comendo gay sem camisinha, uma hora dá certo! Essa piada pode parecer um pouco preconceituosa. Porque é".
Sem dúvida.
O dito humorista ainda listou testemunhos de pessoas que integram os grupos minoritários que viram alvos do seu escárnio, como a dizer: "Vejam aqui: não só não reclamaram como gostaram". As imputações de que tratam as leis 7.716 e 13.146 são crimes ditos "formais". Não dependem de uma consequência deletéria imediata ou do apelo de um ofendido à Justiça. Assim é e assim têm de ser porque, no mais das vezes, o humilhado não tem como se lançar contra quem o humilhou. Basta que a coisa tenha acontecido, sem dúvida razoável sobre o havido, para que o Ministério Público entre em ação, com fez. Se não fosse assim, raramente a vítima teria como apelar ao Estado legal contra o seu algoz.
A juíza, com rigor técnico, evoca jurisprudência do Supremo e transcreve:
"No caso de confronto entre o preceito fundamental de liberdade de expressão e os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica devem prevalecer os últimos, na esteira do que decide o Supremo Tribunal Federal há mais de duas décadas, pois 'um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra, não podendo a liberdade de expressão consagrar 'direito à incitação ao racismo'", (STF, HC 82424,Relator: Ministro Moreira Alves).
Alguém se opõe ao que vai acima? Eu não. E, até que não mude a jurisprudência, é o que vale. No julgamento em curso no Supremo sobre a responsabilidade civil das redes, André Mendonça, um dos dois ministros indicados por Jair Bolsonaro, inverteu o argumento. Para ele, o direito individual se impõe sobre a proteção da coletividade. O bolsonarismo precisa do vale-tudo nas redes para manter a permanente mobilização das hordas afascistadas contra a democracia e o estado de direito.
OS DISCÍPULOS DE CAROLINE DE TONI
É certo que não estou entre aqueles que pensam que o humor pode tudo. Fosse assim, chamar-se-ia "Deus", e os humoristas seriam aiatolás de uma teocracia. Mas, se quiserem, podem ignorar tudo o que há de considerações valorativas no que escrevi e se fixem apenas na questão legal. A juíza decidiu conforme a lei.
Os inconformados, humoristas ou não, têm, no entanto, razões para esperança. Caroline de Toni lhes oferece uma saída: vulnerar a proteção que a Lei 7.716 oferece àqueles que são vítimas de "preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional". O STF, o belzebu da extrema direita, estendeu a proteção legal à comunidade LGBTQI+.
Caroline, a defensora da patrulha e censura a professores em sala de aula, quer extinguir os Parágrafos 2º e 2º A do Artigo 20 de tal lei. Pretende explicitar que, grande guia do pensamento progressista!, inexistem crimes de racismo e afins para artistas. Que momento sublime do debate sobre a liberdade de expressão! Os afascistados caçam e cassam livros em escolas; perseguem exposições de arte; fazem lista para demonizar artistas e pregam boicote a shows... Mas vão garantir a tranquilidade aos humoristas que precisam atacar negros, gays, mulheres, gordos e pessoas com necessidades especiais para exercer o seu ofício. Que modo de ganhar a vida!
Sugiro, gente valente, um show de celebração da "verdadeira liberdade de expressão". Como Caroline sabe que atacar brancos, héteros ou a turma da bancada do boi, da bala e da Bíblia não arranca o riso das plateias de brancos, héteros e admiradores da bancada do boi, da bala e da Bíblia, passará por paladina da liberdade. Cobre-se dela a promessa de que continuará a posar com fuzis, pronta para defender os humoristas e os jornalistas que se sentem oprimidos pela lei antirracismo e pelo, como é mesmo?, politicamente correto.
CAMINHANDO PARA O ENCERRAMENTO
Volto ao ponto. A juíza aplicou o arcabouço legal. E desafio que demonstrem o contrário. Há quem esteja inconformado. A Lei Afonso Arinos, de 1951, foi a primeira a criminalizar o racismo no Brasil. Um avanço conceitual, já que nada acontecia na pratica. Foram necessários mais 38 anos para que se chegasse à primeira versão da lei 7.716, em 1989, que passou a efetivamente punir os racistas.
O texto legal e a jurisprudência do Supremo passaram por mutações, ampliando a proteção aos vulneráveis. Parece que 137 anos depois da abolição total da escravatura, mas não do universo da escravidão, temos uma nova categoria de inconformados com os "excessos" do abolicionismo: a de alguns humoristas e jornalistas. É hora de convocar a reação dos brancos. Caroline se oferece para liderar a marcha.
Essa gente não leu a sentença de juíza. Também não leu o abolicionista Joaquim Nabuco:
"A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte... É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do Norte. Quanto a mim, absorvi-a no leite preto que me amamentou; ela envolveu-me como uma carícia muda toda a minha infância; aspirei-a da dedicação de velhos servidores que me reputavam o herdeiro presuntivo do pequeno domínio de que faziam parte..."
Ah, sim: não se esqueçam de pedir à deputada que se arme também contra a lei que protege as pessoas com deficiência. Para que a segurança seja total..
CONCLUO
Vocês, grandes defensores da liberdade de expressão, fiquem sob o comando de Caroline e seu fuzil. Eu estarei do outro lado. Dado o Congresso que temos, é bem possível que vocês vençam e que eu fique entre os perdedores. Sim, há momentos em que perder pode ser uma honra. Mas advirto: qualquer lei que implique um recuo nos direitos fundamentais é inconstitucional.
Tenham a coragem, bravos!, de se juntar às hostes de Caroline. E parem com os ataques covardes à juíza Bárbara de Lima Iseppi. Ela só aplicou a lei, como reconhece a nova líder de vocês. Por isso mesmo, a buliçosa parlamentar quer mudá-la. Um pequeno passo para a piada, mas um grande passo contra humanidade.
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