Leonardo Sakamoto

Leonardo Sakamoto

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Opinião

Congresso protege rico, e pobre limpa a sujeira na suruba dos privilegiados

Para a imprensa, o Congresso Nacional veste o macacão de bombeiro das contas públicas, reclamando dos incêndios do governo federal. Quando as câmeras são desligadas, ele tira o macacão e volta para a grande suruba dos mais ricos, um grande grupal econômico, do qual participam sortudos do setor público e do setor privado desde a fundação de Pindorama. No final, quem limpa a sujeira são sempre os pobres, usando seu salário mínimo como esfregão.

Tiago Mali, do UOL, trouxe hoje um exemplo da suruba, o projeto de lei 2.721/2021, aprovado pela Câmara dos Deputados e em análise no Senado Federal, que institucionalizaria mais de R$ 7 bilhões em penduricalhos recebidos pelo Poder Judiciário.

Deputados e senadores sequestraram parte do orçamento nacional, obrigando o Poder Executivo a enviar bilhões em emendas para suas bases eleitorais. Nem sempre, contudo, elas viram asfalto de vicinal, quadra poliesportiva ou lousa para escola. Não raro, nascem como emenda, transformam-se em kit de robótica e depois viram cascalho no cofre de amigos.

Parlamentares dizem que privilégios do setor público, vistos como direitos adquiridos por quem deles se beneficia, serão atacados pela reforma administrativa. Ahã, Cláudia, senta lá.

Enquanto isso, quem ganha mais de R$ 600 mil por ano via dividendos de empresas paga menos imposto que alguém que recebe três salários mínimos por mês. O Congresso, pensando em si mesmo e nos seus, tenta elevar o patamar da incidência de um imposto proposto pelo governo para corrigir essa pouca vergonha para R$ 1,8 milhão - e ainda assim com uma má-vontade que Deus que me livre e guarde.

Isso sem contar os benefícios e renúncias fiscais. É claro que nem tudo pode ser cortado nesse bolo de R$ 800 bilhões, segundo os novos cálculos do governo. Mas há sim coisas que poderiam ser reduzidas se houver vontade política, apesar do que dizem os cínicos de plantão. Limitar a dedução nos gastos de saúde no Imposto de Renda que hoje dá bilhões às classes média alta e alta, diminuir os incentivos à Zona Franca de Manaus e a um rosário de setores econômicos como de eventos, fazer um pente fino no Simples.

Mas quando se fala em reduzir as gratificações que o Brasil paga a seus ricos, seja através da isenção de dividendos ou nas renúncias fiscais, uma galera criada no leite de pera brada aos quatro ventos que isso é aumento de imposto, que o Brasil não aguenta mais, que o capital vai fugir para fora, que o Godzila vai destruir a civilização ocidental.

Compreende-se, é defesa da própria classe. O que me surpreende é que o argumento é comprado e repetido gostosamente por um pessoal que foi criado no Leve Leite.

Sobra o que como a grande solução nacional? Acabar com a valorização do salário mínimo acima da inflação, que começou com FHC, foi transformada em política por Lula, depois mantida por Dilma e Temer, e defenestrada por advinha quem. Voltou agora só para ser apedrejada na praça pública e culpada por todas as tragédias. Sim, os R$ 1.518 viraram o novo número da besta.

Continua após a publicidade

Há quem não defenda o fim do aumento real, mas peça desvinculação dos benefícios previdenciários e sociais. Traduzindo: aposentados, pensionistas, idosos e pessoas com deficiência em situação de miséria teriam reajuste menor no valor pago mensalmente em comparação aos da ativa. Com o passar dos anos, a situação distanciaria o seu valor do mínimo salário vigente. O que não é um problema porque, como sabemos, pobre, uma vez pressionado, passa a realizar fotossíntese.

Já disse aqui um rosário de vezes que apenas cortar privilégios dos mais ricos não vai resolver o problema. E talvez medidas duras precisem ser tomadas. Mas começar o ajuste pelos mais pobres, de novo, ignorando o andar de cima, é uma tremenda de uma sacanagem.

Enquanto isso, categorias se beneficiam de condições especiais para se aposentar (como os militares), a arrecadação sangra através de fraudes trabalhistas (como terceirização e pejotização ilegais) e a falta de regulação das plataformas de motoristas e entregadores arma uma bomba-relógio previdenciária (o sistema de MEI é importante, mas ele gera um baita déficit). Isso sem contar que tem juiz que concede BPC para qualquer um que lhe disser "bom dia", mesmo que não se enquadre nos critérios. Tem culpa do Executivo, mas tem do Legislativo, do Judiciário e dos ricos do setor privado.

Como sempre digo, o Brasil é um transatlântico de passageiros, com divisões de diferentes classes, com os mais ricos tendo mais conforto em suas cabines. Não estou entrando no mérito de como chegamos a essa situação, nem propondo uma revolução imediata para que cabines diferenciadas deixem de existir. Mas é fundamental que a terceira classe conte com a garantia de um mínimo de dignidade e primeira classe pague passagem progressivamente proporcional à sua renda. E que na hora que a nave fizer águam, todos tenham que dar a mesma cota de sacrifício e ter direito aos botes salva-vidas.

Enquanto isso, seguimos parecidos como um navio remado por trabalhadores que, a qualquer sinal de tempestade, aumenta a frequência do estalar do chicote enquanto poupa meia dúzia de passageiros ricos. Ironicamente, uma parte dos remadores não questiona a exploração, mas rema sonhando feliz ao ver a imagem dos mais ricos glamourizando no Instagram.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

OSZAR »