Sobrou só uma casa na av. São João, e ela retrata a história de São Paulo
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De frente para o elevado João Goulart, o Minhocão, pintada de cinza e com duas janelas verticais azuis, a última casa que restou na avenida São João é uma modesta e centenária residência, que hoje funciona como hospedaria só para homens. No número 1767, viu os imóveis vizinhos serem demolidos, e o seu entorno ser tomado por prédios e comércios, mas sobreviveu à especulação imobiliária na principal via do centro de São Paulo.
Com 210 m² de área, 7 m de largura e 30 m de comprimento, a casa do fim do século 19 ficou espremida em um pequeno trecho dos 2,2 km da São João. Quem passa pela frenética avenida, por onde circulam 38 mil veículos diariamente, talvez nem a note.
O responsável pela construção foi o imigrante italiano Savério Ferrara, que comprou o terreno em 14 de dezembro de 1897 e ergueu a casa de arquitetura simples e funcional, onde morou até os últimos dias de sua vida.

Com 20 e poucos anos, ele, dois irmãos e suas esposas deixaram o pequeno vilarejo de Montazzoli, em Abruzos, no centro da Itália, hoje com cerca de mil habitantes, em busca de melhores condições em solo brasileiro.
A mudança aconteceu na grande imigração italiana, entre 1880 e 1930, quando o governo criou iniciativa para substituir a mão de obra escravizada. Na crise econômica e social na Itália, com falta de emprego, milhões de italianos vieram trabalhar no Brasil.
Quando a casa foi construída, a avenida São João ainda era uma rua pequena, no então distrito de Paz de Santa Efigênia. Foi lá, inicialmente no número 449, que a família Ferrara viveu por mais de cem anos após desembarcar.
Savério ficou viúvo cedo, a esposa morreu em um acidente de trânsito a caminho de Aparecida, no interior de São Paulo, e ele precisou criar os quatro filhos sozinho naquele imóvel.
Nas primeiras décadas do século 20, não era raro encontrar a casa cheia aos finais de semana. Primos, tios, filhos e sobrinhos se dividiam nas funções para organizar os encontros no quintal, regado a macarronada com molho de tomate fresco e carne assada. A mesma receita, que trazia um pouco do aroma das noites em Montazzoli, passou por diferentes gerações e é servida até hoje na família.
Mesa farta e comida de qualidade preparada em casa eram prioridade para os italianos. Os encontros semanais eram como rituais de resistência contra o apagamento das tradições, entre elas o amor pelo baralho e pela culinária. Era o momento de transmitir aos mais jovens a cultura do vilarejo de onde vieram.


Além da verticalização, a casa também viu o transporte público de São Paulo se modernizar. Nos anos 1900, vieram os bondes elétricos, que passavam por caminhos de vigas de ferro nas regiões mais movimentadas da cidade.
A aposentada Rita Ferrara, 83, neta de Savério, corria até a sacada para assistir o bonde passar e ficava admirada com as corridas noturnas da São Silvestre e os desfiles de Carnaval. Da janela de casa, ainda menina, ela viu São Paulo se desenvolver.
Eu gostava muito de bicicleta, andava muito pela São João. Eu amava! Não era essa loucura de hoje. Quando era época de Carnaval, a gente ficava na janela vendo passar, a família toda junta. Meu avô colocava um banco na frente da casa, e sentava todo mundo na calçada, minha avó fazia bolo, e a gente comia na calçada. No Natal, a família se reunia, fazíamos uma bagunça.
Rita Ferrara
Paisagem da São João se transformou

A grande mudança veio com a construção do Minhocão, no início da década de 1970. O elevado, apesar de ter um papel relevante no trânsito da cidade, é considerado por especialistas um "desastre urbanístico".
"Desde sua concepção, a proposta de um elevado, que faz parte da ligação leste-oeste, gerou muita polêmica. Idealizado na segunda metade da década de 1960 pelo prefeito Faria Lima, foi engavetado devido à reação negativa. Predominou a visão de que era uma obra que causaria um impacto extremamente negativo na paisagem urbana, e que alternativas viárias poderiam ser estudadas. Em 1969, quando o Ato Institucional nº 5 suprimiu as liberdades políticas, de expressão e de imprensa, Paulo Maluf decidiu iniciar a obra em ritmo acelerado", explica o arquiteto Nabil Bonduki em coluna publicada no UOL.
Inaugurado por Maluf em 1971, o Minhocão afetou as residências e estabelecimentos da região, que se desvalorizaram. Além da arquitetura mal planejada, o ruído e a poluição passaram a afetar quem morava próximo ao elevado. A área ficou degradada e muitos moradores abandonaram os seus imóveis.
Ao lado da última casa da avenida São João, por exemplo, estava o famoso teatro das Nações, no número 1737. O local viu seu auge das décadas de 1960 e 1970, mas fechou as portas nos anos 1990 e foi demolido em 2010 para virar um edifício residencial.
Em 1993, Oswald Ferrara, filho de Savério, contou em entrevista à revista Veja como foi a chegada do Minhocão:
"A São João era cheia de árvores, passarinhos e vizinhos amigos", disse o contador aposentado, na época com 84 anos. "Depois que o Minhocão chegou, todo mundo foi embora, não coloco o nariz para fora da porta à noite. Como o elevado cobre a luz do sol, tudo ficou mais insalubre", disse.
Na fotografia de Oswaldo na janela da casa. é possível ver o Minhocão ao fundo.

Dos quatro herdeiros de Savério, Oswaldo foi o único que permaneceu na casa. Ele viu seus irmãos se casarem e irem embora, mas batia o pé e dizia que só sairia quando morresse. E assim o fez, em 2000, aos 94 anos.
"Meu avô nasceu ali e dizia que não sairia de jeito nenhum", conta a psicanalista Silvia Ferrara, 63, neta de Oswaldo e filha de Rita. Ela lembra que, no fim dos anos 1990, a segurança já era motivo de preocupação para a família, mas seu avô fazia questão de manter a mesma rotina. "Era 11 horas da noite, ele saía para passear com o cachorro e deixava o portão aberto."
Memória e tradição preservada
Nos quatro quartos, porão, quintal e na pequena cozinha, as gerações da família Ferrara foram crescendo e se moldando à nova São Paulo, mas sem esquecer das raízes.
"Era uma cozinha pequena, devia ser alguma tradição da região de onde vieram. Porque se cozinhava tanto, mas era tão pequena. O banheiro era separado da privada e do local onde se toma banho. Eu lembro que eles jogavam muito baralho, a casa estava sempre cheia, o macarrão era cortado na guitarra [cortador de massa no formato do instrumento], lembro de chegarem às caixas de comidas da Itália e deles misturando português com italiano", diz Silvia.

"Viajamos para a Itália para conhecer um pouco da nossa origem, mas não conseguimos ir até o vilarejo, porque é uma região montanhosa e de difícil acesso. Mas um primo tem uma casa lá. Tenho vontade de conhecer", diz Silvia.
Apesar de ninguém da família morar mais na casa, a tradição dos encontros segue viva. "A gente continua reunindo os primos, com muita comida, principalmente no Natal e na Páscoa. Claro que menos do que antes, mas a gente sempre tenta estar junto, a nossa italianada", conta.
O futuro da última casa da São João é incerto

Silvia é a última herdeira da casa e a responsável pelo imóvel, que está alugado desde 2010. Embora a casinha reúna memórias da família, ela pensa em vendê-la, mas nunca recebeu uma oferta.
"Ficou muito perigoso [o entorno], e a casa é um pouco grande, tem muitos cômodos, não tem muro, eu tinha medo de ter alguém lá dentro", explica. Ela diz que, se o Minhocão não tivesse sido construído, moraria lá novamente. "Mas, do jeito que está, é o retrato da degradação da nossa cidade e do nosso patrimônio."
Desde 2010, a hospedaria para homens oferece desde diária a pacote mensal, mas a frequência é baixa. Os vizinhos contam que quase não veem pessoas entrando e saindo do local —e pouco sabem da história da casinha.
"Sei que está aí há muito tempo. É bonita, mas não sei por que não foi destruída", diz um comerciante.
Sempre que passa de carro pela avenida São João, Rita Ferrara não resiste a uma olhada para a casa onde nasceu. "Eu olho e penso assim 'oi, você está aí ainda?".
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