Carlos Madeiro

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Reportagem

Comunidades do RN se revoltam e processam eólica após perdas de caju e mel

Entidades e agricultores do município de Serra do Mel, no semiárido do Rio Grande do Norte, estão processando a empresa Voltalia, com sede na França, por danos ambientais causados pela instalação de 19 empreendimentos de energia eólica. Eles pedem uma indenização de mais de R$ 100 milhões para melhorias das comunidades, além de outras medidas para reduzir os danos já gerados.

Os moradores cederam áreas para instalação de torres e linhas de transmissão, mas reclamam dos valores pagos abaixo do prometido. Eles também alegam que não foram informados sobre os impactos da atuação da empresa na produção de mel e caju, principais culturas agrícolas da cidade. Após a publicação da matéria, um grupo de moradores questionou a legitimidade da ação e os impactos e defendeu a manutenção das torres (veja mais abaixo).

"Diziam que não ia impactar nada, que a gente ia ficar com a terra livre. O prejuízo que vivemos não supre as perdas causadas. A sensação é de revolta", afirma Antônio de Souza Bento, 38, produtor e presidente da Associação de Moradores da Vila Piauí.

Antônio diz que a Voltalia prometeu ganhos entre R$ 4 mil a 5 mil por mês, mas os valores atuais são de, no máximo, R$ 1.500. "Tem gente ganhando 600, 800, 1.000 reais. Sem contar o impacto nos animais, que todos sentiram. As vacas reduziram o leite", diz.

Segundo ele, no município, são 642 contratos assinados cujos impactos estão sendo questionando. "É um prejuízo incalculável. Eles pagam muito pouco. Pedimos prestação de contas dos valores; nunca fizeram", afirma.

Além disso, os moradores dizem que nunca se acostumaram com os ruídos das torres. Com a cessão das terras, perderam acesso a benefícios como crédito subsidiado e direito à aposentadoria rural. O combo de problemas teria levado a um "adoecimento" das comunidades, associado ao que chamam de síndrome da turbina eólica.

Entrada de Serra do Mel, cidade do caju e do mel no RN
Entrada de Serra do Mel, cidade do caju e do mel no RN Imagem: Divulgação

10 anos da chegada

Serra do Mel tem 13 mil habitantes, segundo o Censo 2022, e 74% deles moram na zona rural. Como o nome sugere, a cidade é conhecida pela forte produção de mel e também pelos cajueiros, que, juntos, geram renda aos camponeses. Somente em 2023, segundo o IBGE, a produção de castanha alcançou 19,5 mil toneladas.

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As primeiras licenças prévias para instalação dos parques eólicos foram concedidas em 2015. A partir dali, o projeto de implantação foi sendo apresentado como uma renda extra aos sertanejos. A maioria dos donos de terra firmou contratos de arrendamento de 35 a 50 anos.

Os problemas chamaram atenção da Prefeitura de Serra do Mel. O secretário de Agricultura de Serra do Mel, João Freitas Fernandes, afirma que uma audiência pública sobre o tema será feita para debater o problema.

"Se continuar do jeito que está, Serra do Mel vai ficar deserta e perder a referência do caju e da castanha e produção do mel. É preciso olhar agora para não termos uma cidade empobrecida, em que as pessoas não tenham mais de onde tirar o sustento", diz.

Segundo ele, o movimento não é contra a produção das energias renováveis, mas pede limites, com regras bem definidas. "Hoje a pessoa perde parte ou toda a propriedade, perde a produção e ganha muito pouco. É preciso fazer uma coisa justa e transparente", diz João, que também é produtor.

O município conta com 40 empreendimentos eólicos em 13 das 23 vilas existentes em Serra do Mel: 36 deles em operação e quatro, obras.

O secretário ainda compartilha o sentimento de que todos que cederam terras se sentiram enganados.

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Quando chegaram, estávamos no período mais triste, de uma grande seca; os cajueiros morrendo. Naquele momento, falaram que ia ocupar uma área só de 50m² da propriedade, que ia ser só uma renda extra. Na necessidade que a gente estava, achava que era ótimo. Mas quando foi avançando, as coisas foram aparecendo.
João Freitas Fernandes

Vila Piauí, em Serra do Mel, repleta de torres eólicas
Vila Piauí, em Serra do Mel, repleta de torres eólicas Imagem: Arquivo pessoal

O que diz a ação

Em 21 de maio, advogados do escritório LBS entraram com uma ação civil pública na Justiça estadual cobrando uma indenização de pelo menos R$ 106 milhões de reparação por danos coletivos (equivalente a 7,5% do lucro operacional de 2024).

A ação é assinada pela Fetarn (Federação dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares do Rio Grande do Norte), CUT-RN (Central Única dos Trabalhadores) e a entidade potiguar SAR (Serviço de Assistência Rural e Urbano). O alvo são as duas empresas do mesmo grupo: a Voltalia Energia do Brasil Ltda. e sua controladora Voltalia S/A.

A ação cita como os cajueiros perderam produtividade após a chegada das eólicas.

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Há laudo técnico apontando que a supressão vegetal e poeira quente em Serra do Mel gerada pelo uso de máquinas pesadas queima as flores, cobre as folhas, impede a fotossíntese e afasta polinizadores essenciais. Isso compromete diretamente a formação de frutos e pseudofrutos na área afetada.
Trecho da ação civil pública

Nesse processo, houve também a chamada "fuga das abelhas", em decorrência da diminuição da flora e pela poluição sonora. "Esse fato é uma das maiores preocupações registradas pelos agricultores", diz a peça.

Como resultado das eólicas, a área agrícola cultivável caiu de 35 mil hectares, em 2014, para 20 mil, em 2022.

Mapa das eólicas em Serra do Mel (RN)
Mapa das eólicas em Serra do Mel (RN) Imagem: Reprodução

Segundo os advogados, a situação resultou na ausência de estudos mais detalhados que apontassem com antecedência os danos socioambientais na região.

Por fim, além das indenizações, a ação pede que a Justiça obrigue a Voltalia a adotar medidas mitigadoras e compensatórias para "preservação ambiental e a viabilidade econômica das comunidades locais", assim como R$ 100 mil a todas as pessoas que comprovarem que são vítimas da síndrome da turbina eólica.

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"De 2017 a 2022, houve um aumento de 14.600% no número de diagnósticos de problemas auditivos e perda de audição, distúrbios do sono e transtorno de ansiedade e pânico", diz a ação, citando que os dados foram retirados do Sisab (Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica), do Ministério da Saúde.

O que diz a empresa

A empresa mandou nota ao UOL sobre a ação:

Sobre o referido processo judicial, a Voltalia declara não ter sido oficialmente notificada. A empresa reforça que cumpre rigorosamente a legislação brasileira e adota as melhores práticas do setor, com um processo de construção contratual coletivo, participativo e transparente, além de um compromisso contínuo com o desenvolvimento social das comunidades nas áreas de atuação de seus projetos.

Associações defendem eólica

Em nota assinada em 1º de junho e enviada à coluna, dirigentes de associações, cooperativas, autoridades e agricultores familiares alegaram que estão temerosos com a ação, que poderia resultar no encerramento de até 80% dos parques eólicos de Serra do Mel.

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"Os agricultores locais receberam, apenas em 2024, dezenas de milhões de reais em receitas provenientes da produção de energia eólica. Com contratos de arrendamento com vigência média de 50 anos, o encerramento antecipado desses acordos pode representar perda bilionária para os pequenos proprietários ao longo das próximas décadas", diz a nota.

O ponto que eles consideram mais polêmico da ação é o pedido de criação de um fundo e diz que as entidades teria ignorado associações, cooperativas e movimentos sociais locais ao proporem "uma ação sem diálogo com as comunidades e com base em alegações falsas".

As entidades questionam distância de 2 km de residências que devem licenças de parques, o que forçaria o deslocamento de 28 dos 36 parques eólicos do município. "Esse critério não possui respaldo científico e foi definido de forma arbitrária, ignorando os impactos econômicos e sociais da
medida", diz.

Ainda segundo o texto, o modelo coletivo adotado lá é referência nacional, já que Serra do Mel é formada por propriedades familiares de 50 hectares, organizadas em 22 vilas rurais. "Em vez de remunerar apenas quem possui torres instaladas em suas terras, todos os proprietários da vila compartilham a receita gerada pelo empreendimento", diz, citando que é um modelo "que pode inspirar o Brasil e o mundo".

As lideranças ainda acusam as entidades proponentes da ação de manipulação de dados públicos, especialmente na área da saúde. "A alegação de adoecimento causado pelas eólicas é irresponsável e desinformada e é uma forma de engajar a opinião pública contra um projeto solidário e que tem tirado os agricultores da pobreza", afirmou Antônio Marcos, presidente da Associação Energia Renovável Potiguar.

Sobre o mel e castanha, dizem que a produção está "em alta". A Associação dos Apicultores de Serra do Mel diz que nunca se produziu tanto mel como agora.

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Assinam a nota:

  • Associação Energia Renovável Potiguar (AERP)
  • Associação de Desenvolvimento Comunitário de Vila Amazonas Serra do Mel (ADECOVAM)
  • Associação Comunitária de Vila Pará (ACOPAARÁ)
  • Associação Comunitária de Vila Acre (ACOVAC)
  • Associação dos Produtores de Caju da Vila Ceará (APROCAVICE)
  • Associação dos Apicultores de Serra do Mel (APISMEL)

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